Museu de Arte Murilo Mendes | MAMM
As voltas da Abstração
Há um bom tempo os pintores vêm pondo por terra a crítica teleológica que compreendia a abstração como um fim ao qual a pintura moderna havia chegado. Se nem a “perspectiva legítima” e a gramática da figura esgotaram as questões e os assuntos dessa arte, por que não haveria de ocorrer o mesmo com a sintaxe abstrata? As pinturas de Eduardo Borges e Gilton Monteiro Jr. tornam oportuna a reflexão sobre o sentido da abstração a partir de procedimentos opostos de realização e pensamento, tendo como zona de confronto o campo da imagem. Deste modo, a despeito das grandes diferenças morfológicas que pouco ajudam na apreensão das especificidades e dos diálogos inaudíveis entre obras de arte, esses trabalhos ocasionam proximidades e produzem distâncias, atacando supostos entendimentos que o senso-comum alimenta sobre a pintura abstrata.
Os trabalhos de Eduardo Borges partem de reconstituições e interferências sobre fotografias eleitas sem qualquer vínculo com a subjetividade do artista. São imagens desprovidas de cargas psicológicas, portando, no máximo, a significância técnica que a caracteriza enquanto artefato social. O pintor intervém exatamente nessa significância, não se tratando de um questionamento (ou dissolução) do gênero retrato. Enquanto refugos de nossa imagerie social, essas fotografias nada versam sobre uma história ou memória, e por isso elas estariam próximas do tipo de uso, por assim dizer, “ready- made” abstrato, que um pintor como Gerhard Richter faz de registros fotográficos anônimos quando deles se apropria. O tratamento atribuído aos trabalhos reitera esse aspecto impessoal e desafetado. Ele fica visível na presença de uma pedra, reproduzida de modo quase hiperrealista, exprimindo um labor empenhado no detalhamento e na reprodução fidedigna de uma imagem. Ainda que vertiginosa e excêntrica, a introdução desse elemento não convoca qualquer charada. As pedras estão ali para provocar a nossa percepção, dilatando o tempo da imagem e gerando um ruído no sistema. São elas, talvez, as portadoras de uma afetividade.
Já as pinturas de Gilton Monteiro Jr. se fazem abstratas por outros meios. Constituídas de duas ou mais partes, contrapondo-se e reiterando-se, as telas deixam emanar um tom irônico sóbrio e austero. Esse recurso irônico esvazia essas pinturas de um pathos, desconfia da lírica e apela a uma percepção que se quer atenta à relatividade do conjunto, na articulação deliberadamente provisória entre cada uma de suas partes. Não resta desse processo nenhum tipo de redução da forma à sua elementaridade, isto é, não se pretende operar na fenomenologia do olhar, nem tampouco evocar as circunstâncias e estruturas do sistema perceptivo. No fim elas parecem até mesmo inviabilizar uma imagem. E isso porque é a própria estrutura da mimese que é compreendida como um processo em face do contingencial e do efêmero – fenômeno absolutamente relativo em um mundo relativizado. Daí a importância do trabalho da pintura, enquanto um fazer sem fim, colocando em sua conta o sentido de uma arte que se vê às voltas com seu tempo.
Tratam-se de dois tipos distintos de confrontos com a linguagem pictórica, e que se querem abstratas por jogarem com as forças estruturantes da realidade, ou melhor, da atualidade. Esses trabalhos manifestam uma confiança na eficácia da pintura em pensar uma sociedade de intenso e disparatado consumo imagético. Uma confiança que só alimenta a crença na possibilidade desta arte pensar a estrutura do sentido (e/ou de sua inviabilidade) em nossa sociedade.